Ele brilha no teatro, no cinema e na televisão. É dos poucos atores de Brasília que são reconhecidos na rua pelo seu ofício. Precisamos falar dele que é um dos homens das artes mais atuantes do DF!
Ele já fez tanta peça nessa cidade que citar cada uma delas seria um desafio imenso. Trabalhou com nomes do teatro, como Hugo Rodas, Antonio Abujamra, Sura Berdithevisky, Adriano e Fernando Guimarães, Guilherme Reis e Sergio Sartório. No cinema, foi dirigido por Suzana Amaral, José Eduardo Belmonte, Marcio Curi, Mauro Giuntini, Jimi Figueiredo, Iberê Carvalho e muitos outros. Seus últimos trabalhos para TV foram na minissérie “Felizes para Sempre”, com direção de Fernando Meirelles e Paulo Morelli, na novela “Velho Chico”, com direção de Luiz Fernando Carvalho, e no telefilme “Fuga de Natal”, com direção de Gui Campos. Com 40 anos de carreira, acumula boas histórias, bons desafios e boas amizades. Chico Sant'Anna é um relicário das artes. Há anos, faz parte da equipe de produção do Espaço Cena e do Festival Cena Contemporânea. Atualmente, é integrante da Cia. Plágio de Teatro. Definitivamente, um nome que não poderia ficar de fora da coluna do Portal Conteúdo.
Eu gosto de Chico Sant'Anna há muito tempo. Tenho orgulho de ser amigo desse profissional incrível e dessa pessoa doce e generosa. Uma coisa eu percebi dois dois anos em que trabalhei com ele no Espaço Cena: Ele tem uma facilidade imensa de trocar ideia com artistas de uma geração mais nova. Na verdade, com ele tive muita liberdade de conversar de igual pra igual... e não é com todo artista mais experiente que a gente tem essa possibilidade de aproximação. Durante o período em que trabalhei no Espaço Cena, foram muitas as tardes de cafés e conversas despretensiosas sobre produção cultural, espetáculos, novelas e experiências nas coxias de teatros e de estúdios. Eu falando das Paquitas e ele das grandes divas do teatro. O papo sempre rendia!
Numa dessas tardes, logo após a morte de Bibi Ferreira, me falou de sua trajetória, disse que cursava uma outra faculdade na UnB e que passou a fazer teatro após uma série de insatisfações. Aí encontrei um vídeo antigo da inauguração do Dulcina em que ele e o elenco da peça "Gota d'água" ensaiavam para a estreia. Esse vídeo, foi a porta de entrada pra falarmos dos encontros da vida.
"Acho eu que somente o teatro nos proporciona encontros mágicos e iluminados, nos permite conhecer o outro de uma maneira mais profunda, que talvez outras áreas de atividades não consigam. A atividade teatral, independente da função exercida, por si só já nos permite essa troca. Aprendi isso nesses meus 40 anos de teatro e não me imagino convivendo com outro tipo de gente que não possua essa magia na alma.".
Foi na cidade de Penápolis, interior de São Paulo, que ele passou toda a sua infância e adolescência. Começou a se envolver com teatro muito cedo. Já no curso primário era o menino escolhido pelos professores para declamar poesias e participar de pequenas encenações na escola. Na adolescência, participou do Teatro Amador dos Estudantes – TAE e, nos anos 1970, com 21 anos de idade, veio para Brasília. A ideia era tentar o vestibular de Comunicação/Publicidade.
A primeira tentativa de entrar na UnB não eu certo. Para continuar na capital, começou a trabalhar como datilógrafo em um órgão do governo. Foi durante o trabalho que ouviu de alguém que a área que ele pretendia se especializar não o levaria a lugar nenhum. O baque foi forte. Ele tentou novamente o vestibular para Comunicação, mas, por via das dúvidas, colocou como segunda opção Administração.
"Não tinha nada a ver comigo as disciplinas que eu teria que cursar. Sofri muito. Eu cursava Administração de manhã e à tarde ia para meu trabalho, onde eu tinha que trabalhar usando paletó e gravata. E era assim vestido que eu ia para a UnB, morrendo de vergonha. Estávamos nos anos do desbunde, da contracultura, do tropicalismo, e eu desfilava pela universidade, de paletó no ombro, com a gravata dobrada e escondida no bolso.".
Numa dessas caminhadas, um cartaz colado sobre os tijolinhos vermelhos do "Minhocão" chamou a atenção dele. Era o anúncio de um grupo de teatro da UnB com o diretor Dimer Monteiro. Foi aí que tudo mudou!
Chico foi ao trabalho e à noite voltou para a UnB, só que dessa vez rumo ao Departamento de Artes. Quando entrou, se deparou com duas moças descalças e com roupas de ensaio coloridas. E ele lá... todo formal. Logo, o diretor surgiu e o estranho no ninho virou a manga da camisa, tirou o sapato e a meia, dobrou a bainha da calça social e esperou ser chamado.
"Eu tremia. Caminhei por um corredor com ímpeto de sair dali correndo, mas não deu tempo. Lá dentro, um grupo de umas 15 pessoas, todas com roupas de ensaio, formando um semicírculo, estáticas, olhavam para mim, sem dizer uma única palavra. O suor descia em bicas pela minha testa. A garganta seca, as pernas tremendo, o coração parecendo que iria sair pela boca. Com um sorriso amarelo no rosto, levantei a mão, como que com um aceno, e disse 'oi'".
Tempos depois e já enturmado, ensaiou com a turma um espetáculo chamado “Jorginho, o Machão”, da dramaturga paulistana Leilah Assumpção. Foi um sucesso dentro e fora do campus. Ao final da temporada, Dimer o aconselhou a não parar de fazer teatro. Em 1979, o próprio Dimer convidou Chico para participar de um espetáculo de inauguração do Teatro Dulcina. Avisou também que a peça circularia pelo Brasil.
"Dimer sempre gostou de pregar peças na gente, inventar situações e depois rir da nossa cara quando descobríamos que fôramos enganados, como, por exemplo, colocar na boca uma cápsula com tinta vermelha e durante os ensaios de uma cena de briga, deixar 'o sangue' escorrer e gritar com os atores que não podia ser com tanta força o tapa, etc... Por isso tudo, não acreditei na estória da peça que inauguraria o Teatro Dulcina e depois viajaria pelo Brasil. Só que daquela vez não era uma das brincadeiras dele. Era a mais pura verdade."
E QUE VERDADE...
A grande Dulcina de Moraes iria inaugurar seu tão sonhado teatro em Brasília com um dos maiores textos da dramaturgia brasileira: “Gota d’Água”, de Paulo Pontes e Chico Buarque de Holanda, tendo ninguém menos do que Bibi Ferreira à frente do elenco.
As quatro principais personagens (Joana, Jasão, Creonte e Egeu), seriam interpretadas por atores profissionais vindos do Rio de Janeiro, mas o grande elenco composto por umas 25 pessoas, entre atores e bailarinos, por exigência de Dulcina, seria de Brasília. Para tal empreitada, ela convidou um diretor “brasiliense”, para juntamente com ela testar esse grande elenco. O diretor escolhido, claro, foi o Dimer Monteiro.
"Quando cheguei lá, tinha muita gente pra fazer o teste. Ao ser chamado, entrei numa sala no segundo andar, onde estavam, sentados atrás de uma mesa, Dimer Monteiro e ninguém mais, ninguém menos do que Dulcina de Moraes. Aquela mulher alta, com olhar penetrante, usando grandes óculos, olhou-me de cima em baixo e autorizou-me a começar. Minha voz desapareceu. Eu não conseguia emitir uma única sílaba. Tremia. Dulcina então, virou-se para o Dimer e perguntou: 'Lá no teatrinho que vocês fazem na UnB ele é assim?'”.
A provocação de Dulcina surtiu efeito. Depois de um leve safanão de Dimer, Chico fez o teste e ainda foi aplaudido. No dia no dia 21 de abril de 1980 subiu no palco do Teatro Dulcina, ao lado de vários atores e bailarinos de Brasília. Confira trechos do ensaio no vídeo raro:
A turnê não era de mentira! Um mês depois após a estreia, começou a viagem pelo Brasil, que durou dez meses. Além de estar diante das maiores atrizes brasileiras, que era Bibi Ferreira, Chico vivenciou de perto o mecanismo de um teatro profissional em turnê. O curso de Administração na UnB e o promissor emprego naquele órgão governamental, nunca mais o viram. Sorte do público!
Como só passei a conviver com Chico nos últimos anos, só o via mesmo nas peças e na TV, só que sem intimidade alguma. Uma vez, até brinquei com ele disse que era meu "muso" do "Vale a pena ver de novo". Volta e meia, estou em casa e lá está o Chico em alguma novela reprisada na TV. Ele participou de alguns clássicos, como "O Rei do Gado", "Da Cor do Pecado", Velho Chico" e "Cabocla", que esteve em cartaz recentemente no Canal Viva.
"A televisão entrou na minha vida casualmente. Achava eu que meu lugar era no palco, aqui em Brasília, e ponto final. Em 1996, eu estava em cartaz num espetáculo chamado 'Cenas na Sacristia'. Certa noite, ao final de uma sessão, Valéria Cabral, então produtora daquele espaço, bateu na porta do camarim e disse para apressarmos, pois tinha uma produtora de elenco da TV Globo, esperando para falar com a gente. Era Frida Richter, que estava escolhendo um ator para uma participação na novela “O Rei do Gado”, numa cena que seria rodada aqui. Eu fui o escolhido e era uma cena complexa, pois tinha um longo diálogo e eu também tinha que dirigir um táxi. Foi minha tensa estreia na TV. Quando a cena foi ao ar, ficou linda, muito bem editada, ao som de 'À primeira vista', na voz da Daniela Mercury.".
Em 2003, trabalhando na videoteca do Itamaraty, Chico recebeu um telefonema do Daniel Berlinsky, produtor de elenco da novela “Da Cor do Pecado”. Por 10 dias, gravou a primeira fase da novela no centro histórico da capital maranhense, fazendo um feirante que tinha uma barraca ao lado da barraca de Preta (protagonista de Taís Araújo). No ano ano seguinte, quem telefonou para Chico foi Rosane Quintaes, produtora de elenco da novela “Cabocla”. Dessa vez não era uma participação pontual, mas sim um contrato de um ano. Na novela, ele faria o papel de Miranda, um empregado do coronel Boanerges, interpretado pelo Tony Ramos. Ele aceitou e foi embora para o Rio de Janeiro, onde ficou por três anos.
Em 2016 teve a belíssima “Velho Chico, também de Benedito Ruy Barbosa. Dessa vez, o convite veio após o último dia de turnê do espetáculo “Noctiluzes”, dirigido por Sérgio Sartório, no Rio. Na última noite da temporada, o ator foi procurado pelo Luis Antonio Rocha, produtor de elenco da novela. Na trama, a personagem do Domingos Montagner (o Santo) sofre um atentado e é jogado no Rio São Francisco. Quando ele volta para a civilização, chamam um médico para ver se havia se recuperado. Chico fez esse médico.
"Quando nos chamaram para a cena, tinham uma 30 pessoas, entre equipe de câmera, equipe de som, equipe de direção, caracterização, efeitos especiais, continuístas e produtores, todos falando ao mesmo tempo. O Montagner, percebendo meu nervosismo, segurou minha mão, olhou nos meus olhos e disse: 'Tudo vai dar certo, Chico. Não se preocupe. Relaxe.'. Quando o diretor disse 'agora é pra valer, vamos gravar!', deu tudo certo mesmo. Foi linda a cena. Nos despedimos. Quinze dias depois, Domingos Montagner morreu afogado no Rio São Francisco.".
Pedi a Chico que me contasse 3 momentos inesquecíveis de sua carreira. Depois pensar bastante, chegou a esses episódios:
1 - Dulcina de Moraes batendo o Bastão de Moliére, no chão da coxia, na estréia de Gota d’Água, no dia 21 de Abril de 1980 - "O som daquelas batidas fortes, a figura solene e magistral de Dulcina de Moraes, empunhando aquele bastão, como uma profetisa, nunca saíram de minha memória. A grande dama do Teatro anunciava, além do início do espetáculo, a realização do seu tão almejado sonho e, para mim, o início de uma vida com a qual eu sempre havia sonhado.".
2 - O Prêmio de Melhor Ator pelo longa metragem “Simples Mortais”, no 12º Cine PE – Festival Audiovisual do Recife, em 2008 - "Jamais esquecerei aquela noite, no Teatro Guararapes, do Centro de Convenções da capital pernambucana, onde quase 3.000 pessoas aplaudiam a minha emoção no palco.".
3 - O ano de 2012. Palco Giratório – SESC - "De abril a dezembro daquele ano, eu passei por mais de 45 cidades, de norte a sul do Brasil, juntamente com meus amigos da Companhia Plágio de Teatro (Sérgio Sartório, Vinicius Ferreira e Chico Sassi), apresentando o espetáculo 'Cru'. Foi um aprendizado de proporções inimagináveis. Uma experiência enriquecedora e inesquecível, além da consolidação de uma amizade e de um amor eternos.".
De Penápolis pra cá, muita coisa mudou. Turnês, viagens, paixões, trabalhos, desafios e encontros. Felizes encontros! Em 2018, com o espetáculo "Saiba seu lugar", seus 40 anos de carreira foram celebrados no palco numa peça forte e que revelava um pouco mais desse homem que merece ser louvado por tanta contribuição à arte e a cultura de Brasília. Esta não é uma matéria para falar de toda a carreira dele. É mais um episódio comentado de sua trajetória. Precisamos falar sempre de Chico Sant'Anna, até porque essa história não termina aqui.
"Não me vejo fazendo outra coisa que não atuar. Como disse Vassíli Vassílitch, personagem da peça “O Canto do Cisne”, de Tchekhov, “é no teatro que encontro sentido para permanecer vivo”.
CHICO SANT'ANNA
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