Ele é ator, diretor teatral, promotor cultural, professor de artes e tem muita história pra contar. Formado na Faculdade Dulcina, conviveu muito tempo com a dama do teatro brasileiro.
Não sei de onde conheço Preto Rezende. Sei que desde que comecei a fazer teatro, Verônica Moreno e outros artistas citavam muito o nome dele. Eu fazia parte da Paixão do Cristo Negro de Samambaia e Preto da Via Sacra de Planaltina. Talvez por isso seu nome era repetido em um ou outro momento. Pessoalmente mesmo eu o conheci nas filas de plateia de espetáculos. E é doido... Há um afeto e um respeito que são recíprocos, mas não sei onde e como eles foram construídos.
Muito se fala de Preto Rezende quando o tema da pauta é o Mini Teatro Lieta de Ló, situado no Setor Tradicional de Planaltina. Inegavelmente, o teatro criado por ele tem muita importância dentro do cenário artístico do Distrito Federal, mas hoje, opto por falar do homem por trás de disso tudo, do rapaz que no início dos anos 1980 se aventurou no que seria uma vanguarda do teatro brasiliense. Quando comecei a apurar as informações para este matéria, me dei do conta do relicário teatral que Preto Rezende possui. Encontrei registros fotográficos belíssimos que nos explicam muito sobre o nosso ofício e a trajetória da arte local.
ISSO FEITO POR UM ATOR, SERIA MARAVILHOSO!
José Vicente Rezende Cardoso, filho de Seu Ló e Dona Lieta, demorou a nascer... Uma lenda de família na época dizia que se nascesse fora do tempo, nasceria preto. O menino Preto nasceu, cresceu, teve emprego fixo e passou a estudar Letras no CEUB. Nessa época, bem no comecinho da década de 1980, ele ouviu um burburinho a respeito da criação de uma Faculdade de Artes em Brasília. Para espanto de seus pais, largou o curso de Letras e se matriculou na Fundação Brasileira de Teatro - Faculdade de Artes Dulcina de Moraes.
Fez licenciatura, depois bacharelado. Assim que se formou na primeira graduação, já passou num concurso da Fundação Educacional e entrou pra sala de aula. No bacharelado, caiu numa turma que teria aulas diretamente com Dulcina de Moraes. Dulcina não assumia muitas turmas, mas os estudantes que entraram com ele tiveram essa sorte. André Amaro, Cleo Aguiar e Marcelo Saback estavam nessa leva.
Preto conta que Dulcina foi professora deles por vários semestres e que os membros da turma eram tidos como "queridinhos" dela. Andre Amaro tá aí pra não desmentir... Ela dava aulas para esses 14 alunos dentro do teatro e isso causava um frisson nas outras turmas que não tinham aula com ela.
"Dulcina era maravilhosa. Era uma senhora e isso exigia um respeito. Por ser um dos mais velhos da turma, às vezes, eu fazias as funções de porta-voz ddos colegas, que eram mais jovens. Nós saíamos para tomar sorvete (que era algo que ela adorava após as aulas). Falávamos sobre teatro e ela sempre nos media em termos de atuação. Ela dizia: Ó... nesse semestre vc não foi legal. Tem que melhorar!"
Ainda sobre essa fase, Preto comenta que Dulcina colocou na cabeça que todo semestre queria apresentar algo dos estudantes no teatro. Dulcina era ciumenta... Não queria que os estudantes trabalhassem em outras peças fora da academia, pois, segundo ela acreditava, isso tirava o vigor e o foco deles. A senhorinha era uma diva, mas também era brava.
"Ela nos orientava, pedia mais concentração, principalmente no quesito de pontualidade. 7h30 era 7h30. 7h31 não podia mais entrar! Lembrava sempre sobre o cuidado com a vaidade e o deslumbramento nas artes. Ela dava uns tapinhas no nosso rosto, mas com carinho. Tinha uma frase que, quem estudou com ela lembra bem: 'Isso feito por um ator seria maravilhoso!'"
As boas histórias de Preto no Dulcina não param, afinal, atuou em mais de 10 peças dirigidas pela atriz. Isso me fascinou e eu tratei de perguntar mais coisas. A cada nova pergunta, uma longa e divertida história...
"Como eu morava mais longe, 45km até a faculdade, havia a restrição do transporte. Meu último ônibus saía às 23h20 da Rodoviária. 23h10 eu já saia correndo. Dulcina não tinha essa noção de que, se eu perdesse o ônibus, teria que dormir na rodoviária. Uma vez disse isso à ela. E ela falou: 'Não... Fique. Eu mando meu motorista te levar de fusca.'. Seu Francisco, o motorista, me levou em Planaltina e voltou pra parte sul da cidade. Mais de 90km até que ele pudesse chegar em casa e dormir. No dia seguinte, ela já me recepcionou profética: Se tiver que sair, saia logo!"
No DF, o artista já formado trabalhou com os mais variados profissionais da capital. Foi membro do Conselho de Cultura, trabalhou na Secretaria de Cultura no DF como Subsecretario de Diversidade Cultural e ainda foi condecorado com o título de Comendador da Ordem do Mérito Cultural do DF, Cidadão Honorário do Distrito Federal, além de receber homenagem no Prêmio SESC de Teatro Candango.
O QUE HÁ DE PRETO REZENDE NA VIA SACRA?
Quanto terminou a Faculdade Dulcina em 1985, foi convidado pela coordenação do Grupo da Via Sacra de Planaltina para contribuir com o evento. Ele era o primeiro profissional formado a participar. Preto lembra que ficou impressionado com a força da comunidade. O evento já acontecia há 12 anos. Ele era apenas um bacharel em Interpretação e a equipe da Via Sacra queria um diretor cênico. Mesmo com medo, encarou o desafio. O aprendizado veio com a prática. Preto está ativamente no evento há 35 anos. Em 17 desses 35 anos ele atuou como Judas, após substituir um colega que frequentemente fazia o papel. Um desafio como ator e uma carga dramática intensa, afinal, as apresentações da Via Sacra em Planaltina são vistas por centenas, milhares de pessoas.
Com tantos anos de atividade na Via Sacra, naturalmente um legado é formado. Antes, o evento não tinha de cultura pra pagamento. Por muitos anos, a equipe fez na raça, a exemplo de outras ações semelhantes em cidades diferentes. Uma das grandes façanhas que Preto conseguiu dentro da Paixão de Cristo foi ajudar a criar em 1994 a Via Sacra das Crianças. A ideia nasceu após algumas conversas com a equipe. Ele bateu o pé, pediu condições para criarem essa categoria temática dentro do evento e assim nasceu uma grande estratégia evangelizadora que dura até hoje, sendo uma das ações mais significativas do evento.
Os toques de direção de Preto na Via Sacra ecoaram e formaram novos profissionais. Católico, o artista sente que sua religiosidade foi sendo estimulada com a vivência na Via Sacra.
"Todo trabalho artístico merece esse olhar especial para as pessoas que irão assistir. Essa formação de público vem desde sempre. Quando eu cheguei na Via Sacra, tinha umas 300 pessoas. Hoje somos mais de 1400 membros, fora o público, claro. Só saio de lá quando Deus não quiser."
O ARTISTA DE PLANALTINA
Na parte artística, Preto começou a ser empreendedor quando criou o Grupo Senta que o Leão é Manso, em 1986. O trabalho continua até hoje, não para. Todo ano os integrantes se mobilizam para montar um novo espetáculo. Como Planaltina é uma cidade com muitas pessoas com renda baixa, são pensadas estratégias como ingressos populares e parcerias com escolas.
"Era difícil fazer teatro em Planaltina. Usávamos um auditório e tínhamos que disputar a pauta com revendedoras da Avon, Associação de Carroceiros e outros grupos. Todo mundo utilizava lá. O Mini teatro Lieta de Ló veio depois, em 2011. Agora existe o Complexo Cultural,, uma luta nossa que dura mais de 30 anos. Antes, tínhamos o espaço e não tínhamos o prédio. Depois nos deram um prédio, que logo foi tomado de volta. Uma luta árdua."
Agora, com a inauguração do Complexo, novos ares chegaram à cidade. Porém, ele foi construído sem muita contribuição das sugestões dos artistas. Ele existe, é positivo, eficiente, mas poderia ser bem melhor enquanto estrutura, defende Preto.
Perguntei a ele quais são os seus desejos pro futuro. Sabiamente, me respondeu:
"Os meus desejos daqui pra frente são desejos de um senhor de 60 anos. Os desejos são de uma pessoa mais madura. Me candidatei pra coordenação da Via Sacra e penso em ter mais experiências no setor de audiovisual. Estou aberto pra que as pessoas me ensinem."
PRETO REZENDE
Alguém aí duvida que ele vai conseguir? Por toda essa rica trajetória, precisamos celebrar Preto Rezende!
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