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Josuel Junior - Editoria

PRECISAMOS FALAR DOS TRADUTORES INTÉRPRETES DE LIBRAS DO DF

Eles prestam serviço para produções teatrais, lives, shows e projetos institucionais. Nesta matéria exclusiva, o Portal Conteúdo abre diálogo com esses profissionais, afinal, não dá pra pensar arte e cultura sem acessibilidade.

O espaço reservado para surdos na programação da televisão e da internet aumentou consideravelmente nos últimos anos. Tornou-se cada vez mais comum ter tradutores intérpretes de Libras, por exemplo, em algumas sessões específicas de espetáculos de teatro no DF. Antes, alguns grupos incluíam o serviço Interpretação de Libras pra pontuarem mais em editais e incentivo à cultura. Hoje, há uma consciência maior de que, independente da linha de fomento, é importante que exista um espaço de comunicação com diferentes públicos.


O Portal Conteúdo conversou com alguns profissionais que atuam como intérpretes na área cultural, na área jurídica e na área religiosa. Muitos apontamentos, dicas, iquietações e impressões sobre o mercado de trabalho brasiliense surgiram após essas conversas, mostrando que por mais que haja boa vontade, ainda existe existe uma lacuna entre produtores culturais e tradutores-intérpretes.


Em teatro percebemos que o dia em que tem um intérprete de libras na sessão é um dia diferente. Há uma nova luz, há o condicionamento entre a paleta de cores da peça com o figurino e, por vezes, até uma adaptação na marcação de movimento dos atores para que os intérpretes e eles dividam o palco. Só que esse contato, muitas vezes, não tem ensaio, não tem preparação prévia - o que dificulta a operacionalização de tudo.


BÁRBARA BARBOSA

Bárbara Barbosa, fundadora da ABAYOMI Produções e Acessibilidade Cultural, comenta profissão no DF:


"A preparação é muito importante já no planejamento. Lá no pré-projeto a Acessibilidade deve ser pensada, discutida e organizada por pessoa especializada na área. No teatro, nós, intérpretes, sempre pedimos para receber os textos antes, assistir pelo menos um ensaio, conversar com a direção da peça sobre a nossa adequação no palco com um figurino que não destoe, nem chame mais atenção do que o cenário, ou os atores. Procuramos ajustar, luz, posicionamento do intérprete e do público surdo, dentre várias outras coisas que, na verdade, seria um trabalho para o Coordenador/Diretor de Acessibilidade do projeto. A acessibilidade começa, na verdade, lá na casa da pessoa com deficiência, quando ela recebe um anúncio em formato acessível e resolve se preparar para ir àquele espetáculo. Fazer tudo isso depois que o projeto já está em execução acaba saindo mais caro."


Bárbara vem do ativismo do Movimento Pelos Direitos das Pessoas com Deficiência. Começou como voluntária na igreja católica em 2000, depois foi Intérprete de Libras e Instrutora no Projeto Javas do Grupo DFJUG - Java Users Group. Também foi Diretora de Comunicação no Fórum de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência - FAPED e, atualmente, faz parte do Coletivo de Mulheres com Deficiência e da Associação de Produtoras e Trabalhadoras da Arte e Cultura - APTA, ambas no DF. É comum encontrá-la em pequenos, médios e grandes eventos artísticos da capital e entorno.

"Em 2006, fui convidada pela Produtora Cultural e então Presidente do Movimento Orgulho Autista do DF a participar de uma produção de show em que se pretendia realizar o primeiro espetáculo acessível do Distrito Federal. E realizamos. A partir daí, me apaixonei pela Cultura Acessível e a Arte Inclusiva. Tenho trabalhado muito para que ambas estejam presentes no máximo de eventos culturais possíveis. Fui me especializar na área, criei uma empresa que oferece Consultoria, Assessoria, cursos, palestras e os próprios serviços de acessibilidade além da Libras. Em 2015, passei a fazer parte de Secretaria de Cultura do Distrito Federal como Gerente de Inclusão e Acessibilidade na Subsecretaria de Cidadania e Diversidade Cultural, com a incrível Jaqueline Fernandes como nossa Subsecretária. Mas, nada disso seria possível se não contasse, desde o início, lá na igreja, com o apoio de Joaquim Barbosa, meu marido, que é um profissional tão criterioso e exigente quanto eu. Também contamos com equipe muito competente e consultores com deficiência que testam e validam todos os serviços que prestamos. A minha vida profissional é resultado de um conjunto de trocas muito boas que foram acontecendo ao longo do tempo. Todas feitas com muita paixão, dedicação, estudo e esforço."


É muito comum em Brasília que uma peça de teatro que tenha, por exemplo, nove sessões reserve apenas um final de semana com apresentação específica em Libras. Isso acontece por vários fatores. É um problema sistêmico de incentivo à cultura. Os projetos recebem uma verba que, na prática, não contempla toda a linha de produção. Geralmente, os atores recebem 700,00 por mês num projeto teatral de 60 mil reais. Os projetos não duram muito. Entre ensaios e apresentações são cerca de 4 meses. Isso faz com que o ator receba uns 3.000,00 pelo trabalho todo. Aí, quando pensamos num intérprete de libras, geralmente coloca-se apenas dois, três dias de cobertura, pagando, mais ou menos, uns 1.000,00 pra ele. Isso não quer dizer que o intérprete seja menos valorizado que o ator... Isso quer dizer que, sistematicamente, o dinheiro empregado à cultura não condiz com as tabelas e referências das profissões do setor cultural. São cerca de 40, 60, 80 mil reais para pagar toda a produção e os tributos dela. Pagar um valor justo para o intérprete e para o ator é um desafio.

"O ideal é que todas as sessões tenham acessibilidade. No caso de ser apenas a Tradução e Interpretação em Libras, reduzir a apenas uma data e horário específicos, ou a um limitado número de sessões acaba por restringir a autonomia e liberdade de escolha da pessoa Surda, bem como, pode reduzir a platéia por inviabilizar pessoas que tenham outros compromissos naquele mesmo dia e horário. Daí, fica aquela impressão de que não há público e que o gasto foi desnecessário ou que poderia ter sido investido em outra área", reforça a profissional.

*Uma ação afirmativa consistente e robusta de verdade, deveria oferecer recursos financeiros específicos para todas as demandas, pois esses serviços têm um custo alto e acabam por limitar  a Acessibilidade somente a Libras. Isso porque é o recurso de acessibilidade mais visível e fácil de comprovar, tanto que o Tradutor Intérprete de Libras está bem visível. Isso acontece também porque é difícil comprovar a quantidade de surdos presentes na plateia, já que essa é uma deficiência praticamente invisível. Aliás, está muito errado ter que comprovar quantas pessoas com deficiência estiveram no local. Essa é uma visão capacitista que diz, indiretamente, que haverá uma readequação por causa dela, quando, na verdade, o espaço é que apresenta barreiras à participação plena, autônoma e livre das pessoas com deficiência. Por isso mesmo é que uma política afirmativa em favor da acessibilidade cultural deveria financiar os Planos de Acessibilidade mais completos apresentados pelos proponentes.


A profissão de Tradutor Intérprete de Libras é reconhecida como uma profissão do ramo da Linguística no campo das Letras Tradução, mas ela tem a peculiaridade de ter se ramificado profundamente nas várias áreas de conhecimento em que os surdos atuam por conta da dinâmica própria da língua, que se renova e se atualiza conforme vão surgindo novos sinais. Isso significa que faz muita diferença para um evento cultural ter um Intérprete específico próprio da área cultural ou ter alguém especializado na área de educação e saúde, por exemplo. Há até cursos de Teatro para Intérpretes de Libras. É importante reconhecer isso para evitar que a qualidade da Tradução e da Interpretação Libras Cultural seja afetada. Um ótimo Intérprete de TV, por exemplo, será bom, mas não será adequado num musical ou no teatro sem preparação específica.

Também é preciso atender a algumas necessidades do intérprete, tais como: Enviar com antecedência roteiro, set list e letras de músicas, nomes que devem ser feitos por datilologia (expor a palavra/nome letra a letra), textos importantes, palavras-chave, áudios para adequação da velocidade de fala/canto; Convidar os intérpretes (ou audiodescritores, legendadores/estenotipistas) para os ensaios; Verificar iluminação e localização no palco com antecedência  e junto com o Intérprete; Incluir melhor o profissional de acessibilidade ao grupo; Evitar setorizar as pessoas com deficiências colocando todas juntas... Tudo isso, de modo que a arte seja verdadeiramente inclusiva, onde o público com deficiência se misture ao sem deficiência e, assim, todos possam curtir o evento independente do setor onde estejam. Por isso é importante fazer uma seleção de prestadores de serviço mais criteriosa (não só pelo valor), avaliando também a qualidade do serviço prestado por meio de profissionais que possam fazer essa seleção.

Além disso, o valor do serviço de acessibilidade compreende várias etapas que não são visíveis, mas que são muito importantes para a boa prestação do mesmo.


RODRIGO RODRIGUES

Rodrigo Rodrigues é Tradutor e Intérprete de Libras e Guia-Intérprete para Surdocegos. Atualmente, presta serviço para o contexto jurídico. Em tempos de pandemia, tem se aventurado numa nova rotina de trabalho remoto.


"Com o trabalho remoto houve a necessidade de adaptar a casa, comprar equipamentos e contratar uma internet com qualidade melhor para que fosse possível atender está demanda. No começo não havia protocolos, apenas experiências e estratégias que eram compartilhadas entre os profissionais. Com base nisso a FEBRAPLIS (Federação das Associações de Tradutores, Intérpretes e Guia-Intérpretes de Libras) lançou um nota técnica com o objetivo de nortear a execução do trabalho prestado por nós. Tenho estudado os matérias ou assuntos que vou traduzir/interpretar, tenho participado de formações e videoconferências para aprender a manusear aplicativos, programas, plataformas e sistemas."


Sobre os desafios e dificuldades que surgem, Rodrigo pontua que gravar em casa tem suas intercorrências, desde o carro do ovo que passa na rua até o pets derrubando os equipamentos de trabalho. De acordo com ele, os desafios técnicos são até tranquilos de resolver, diferente dos atitudinais, que são desafios muito anteriores à pandemia.


"O 'Novo normal' veio com a reinvenção de práticas profissionais e, com isso, percebo que os problemas que aconteciam com pouca frequência (pelo menos para mim), chegam num volume maior, quase sempre de encontro à desvalorização da categoria dos profissionais, o que abre uma brecha para outros profissionais menosprezarem o nosso trabalho e para os órgãos e governos tornarem a profissão um subemprego. Recentemente, Um médico entrou em contato porque precisava de um Tradutor/Intérprete para um atendimento profissional. Questionei a respeito do espaço, se havia a necessidade de ir ao local para gravação ou se poderia fazer de casa. Numa rápida resposta ele afirmou que poderia ser de casa. Com isso, lancei que eu seguia uma tabela de valores de referência e que eu cobrava um valor 'x' por tantas horas de live. Ele se assustou e disse que não tinha recurso para pagar e que tinha inúmeros conhecidos, o que poderia me dar, como ele mesmo disse, uma 'visibilidade fantástica'. Eu respondi que iria tentar pagar meus boletos com isso, ligando no banco para saber se eles aceitam a visibilidade como forma de pagamento. Declinei a proposta."


Infelizmente, essa situação se propaga em diferentes contextos e níveis de trabalho. No fim das contas, quem sofre com a carência do profissional não é o contratante. Quem tem a perder é o público alvo desste serviço, que segue sem informação, excluído é discriminado.


RAPHAEL DOS ANJOS

Raphael dos Anjos é o atual presidente da Associação Distrital de Profissionais Tradutores, Intérpretes e Guiainterpretes de Libras. Atua também como intérprete na UnB e na TV Câmara, conciliando as atividades com a pesquisa na área de tradução audiovisual, tanto que seu mestrado é sobre tradução para cinema. Raphael explica que pelo fato de a associação ser muito recente, ainda não existe uma espécie de banco de dados dos intérpretes do DF.


"As associações que existem para intérpretes visam defender direitos para a categoria e tem por objetivo primar pela valorização desses profissionais, pela boa formação e por uma melhor colocação deles no mercado de trabalho. O que ocorre, muitas vezes, é que muitas pessoas não entendem o nível de especialidade de um trabalho de tradução e de interpretação. É um serviço um pouco caro mesmo porque tem um nível de complexidade alto. Exige, além do esforço cognitivo, um esforço físico envolvido e o nível de conhecimento do produto que está sendo entregue. Quem trabalha com teatro precisa conhecer, minimamente, as regras e diretrizes do teatro para fazer essa construção em outra língua, que é a língua de sinais. Um intérprete que trabalha com interpretação de shows, precisa entender de ritmo e de corporalidade para construir a letra dessas músicas de uma maneira que faça sentido para os surdos."


A associação que Raphael preside aqui de Brasília é veiculada à Federação Brasileira dos Profissionais Tradutores e Intérpretes de Libras. Ele é, inclusive, o atual secretário da FEBRAPLIS e fala dos desafios da atualização constante dos direitos e deveres da categoria:


"Existe uma Lei que regulamenta a profissão do Tradutor Intérprete. É uma lei de 2010 e nossa profissão passou por muitas mudanças desde a criação dela. Existe um projeto de lei para uma atualização dessa regulamentação que vai trazer mais segurança jurídica para o trabalhador dessa área, passando pela área educacional, cultural, jurídica e tantas outras nas quais a gente atua."


DANIEL MADUREIRA

Outro profissional que sempre vemos em campo é Daniel Madureira, que teve seu primeiro contato com surdos dentro de um ônibus, quando ainda era adolescente. Ali começou a interagir com eles, aprendeu os sinais básicos e percebeu que havia um movimento de interpretação de libras dentro da igreja da qual participava. Há 15 anos, participou da criação da Pastoral dos Surdos na Ceilândia Sul e buscou aperfeiçoamento em diferentes cursos.


"Sempre fui convidado a trabalhar como intérprete. A empresa na qual eu trabalhava prestava serviço de tradução para o Senado. Surgiu uma vaga e eu fui pra lá. Depois surgiu um trabalho na Câmara e lá era necessário ter nível superior. Havia me formado em jornalismo e consegui o serviço. Depois fiz o curso de Letras - Libras. Foram 10 anos na TV Câmara e atualmente trabalho na UnB e presto serviços para o TCU e eventos diversos da capital."


Sobre o serviço de tradução em produto cultural, Daniel lembra que é muito importante saber qual é o melhor sinal que se deve utilizar. Diz também que é possível haver interação direta com o intérprete e o ator em cena, afinal, em teatro existem propostas, conceitos e estéticas que podem permitir uma integração mais fluida, dependendo da narrativa.


É muito importante que a comunidade artística de Brasília tome conhecimento da importância da acessibilidade no ambiente cultural, que abrace essa prática já no planejamento do projeto para evitar custos adicionais que podem ser evitados. O respeito e a valorização dos profissionais são o início da garantia de público, da formação de platéia e de bons resultados para todos. Uma reação em cadeia. Acessibilidade não pode ser uma forma de pontuar em editais e sim uma prática natural de propagação da arte como instrumento formativo, contemplativo e transformador.


"O público com deficiência quer Acesso, Acessibilidade e Inclusão: o direito de chegar, o direito de usufruir e o direito de participar com todos. No entanto, quando há baixa qualidade dos recursos de acessibilidade oferecidos, pouca oferta de datas e horários e o próprio acesso desse público não é bom, eles simplesmente não vão. Com a falta de conhecimento, chega-se à conclusão de que não há público com deficiência que justifique oferecer recursos de acessibilidade em todas as sessões. Daí, reduz-se apenas à Libras em dia e horário específico. Perde-se público com deficiência por não haver representatividade, perde-se público sem deficiência que normalmente os acompanha em todos os lugares, como familiares, cuidadores e afins.", finaliza Bárbara Barbosa.


Vale lembrar que o público com deficiência não está preocupado única e exclusivamente com a gratuidade, mas sim com o direito de usufruir eventos culturais artísticos com a mesma qualidade que é oferecida às outras pessoas. Se mudarmos o conceito de sessão especial com acessibilidade para sessões inteiramente acessíveis e inclusivas, todo mundo ganha! Ganha o público, ganha o artista, ganha a sociedade, ganha o país!




*A matéria sobre Tradutores Intérpretes de Libras foi idealizada pela editoria do Portal Conteúdo e escrita por Josuel Junior, (Ator, Produtor Cultural e Comunicador), Bárbara Barbosa (Proprietária da empresa Abayomi Produções e Acessibilidade e Especialista em Consultoria e Produção de Acessibilidade em Ambientes Culturais) e Joaquim Barbosa (Surdo Bilíngue, Especialista em Acessibilidade e Vice Presidente da Organização Nacional da Diversidade Surda).

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