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Josuel Junior - Editoria

TÚLLIO GUIMARÃES - O ETERNO SONHADOR DO TEATRO DULCINA

Morreu hoje o ator, diretor e encenador Túllio Guimarães, mestre de tantos profissionais das artes cênicas do Distrito Federal.

Quando um artista morre, algumas histórias ganham vida. É um fenômeno comum daqueles que carregam consigo pequenos contos, casos, causos e acasos vividos com quem partiu. Foi assim com os Rapsodos, artistas populares da Grécia Antiga que viajavam de cidade em cidade recitando poemas e narrando as grandes epopeias. Hoje, Túllio Guimarães deu adeus ao palco, mas este texto aqui não será sobre encantamento, ficção ou fantasia... será sobre carne, osso e reverência.


Tullio Guimarães foi Bacharel em Artes Cênicas com Habilitação em Interpretação Teatral e pós-Graduado em Linguagem Teatral pela Faculdade de Artes Dulcina de Moraes, pertencente à Fundação pela qual dedicou sua vida, sua saúde e sua doutrina. Chegou a Brasília em 1988 e, desde então, passou a atuar como teatrólogo, ensinando, encenando, dirigindo e escrevendo textos de teatro. Como ator foi dirigido por importantes nomes: B. de Paiva, Antônio Abujamra, Ana Flávia Garcia, Juliana Drummond, Abaetê Queiroz e Jean–Jaques Moutin.


Como professor, já lecionou na Universidade Federal do Maranhão, Universidade de Brasília e Faculdade Dulcina, onde, com idas e vindas, permaneceu desde 1994. Permaneceu não... Resistiu! Porque ali a prova de resistência para assegurar seu merecido FGTS se deu até o fim. O mestre que atuou como facilitador de Oficinas, montando textos de autores como Wedeking, Lorca, Cervantes, Tchecov, Sófocles, Eurípedes, Brecht, Nelson Rodrigues, entre outros, morreu sem receber o pagamento ao qual tinha direito por anos de ofício. Numa batalha quase quixotesca em defesa do nome de Dulcina de Moraes e de seu legado, abriu mão do conforto para exercer sua missão como educador. Louvável? Sim. Justo? Nem tanto...


E Tullio merece sim todas as homenagens, mas sua partida, tal qual foi, nos revela a crua realidade da não valorização do artista da cena no Brasil, onde o currículo e a trajetória não garantem uma passagem branda e calma. É certo que na hora da partida valem as boas lembranças, o afeto, a saudade... mas, sem uma reflexão crítica sobre como o artista envelhece no Brasil, a mesma história de repetirá com quem hoje ainda é jovem, mas que em breve amadurecerá.


Estamos falando de um homem que dirigiu a Companhia de Artes Cênicas do Terceiro Mundo, com a qual levou espetáculos de sua autoria e de outros dramaturgos para vários festivais da América Latina, que desenvolveu um trabalho de formação junto ao Grupo Viva a Vida, composto por atores da terceira idade, encenando vários espetáculos em Brasília e que tinha o sonho de levar à cidade de Planaltina o Festival Entepola - Encuentro de Teatro Popular Latinoamericano. Foi por meio do Entepola que Tullio se tornou celebridade em países da América Latina.


Um educador que sempre passeou entre as funções de eterno espectador e praticante assíduo das artes do palco. Tullio, antes de tudo, foi um incentivador. Quando dava aulas e percebia que havia alguém em suas turmas com potencial domínio cênico, não media esforços para mostrar aos aprendizes os caminhos para se fazer teatro em Brasília e em outros países. Em 2009, junto do ator Vinícius Guarilha, então estudante de teatro da Faculdade Dulcina, circulou por festivais no Chile e Argentina com a ótima montagem "Uñas afiladas, estômago o nada", uma ácida crítica social muito elogiada pelas curadorias da época. Recordo-me também do período em que a Cia. Fábrica de Teatro, grupo nascido dentro dos corredores da Faculdade Dulcina, quis se aventurar no circuito de Festivais de Teatro Latino-americanos. No elenco, jovens atores sedentos de conhecimento e vontade de desbravar as coxias do mundo. Não fosse a ajuda de mestres como Tullio Guimarães, Plinio Mósca e Andre Amahro, a primeira turnê internacional da Cia. jamais seria realizada. Dali em diante, passamos por mais de 15 festivais em seis países diferentes. Essa aposta nas gerações mais novas faz com que, notadamente, artistas iniciantes se sintam acolhidos dentro da esfera teatral.

Final da Mostra Dulcina - Tullio e seus alunos - 2008
Túllio e seus alunos ao final da Mostra Dulcina - 2008

Recordo-me também de reuniões para a montagem do espetáculo "Estação Felicidade" (2009) em que me disse feliz: "Josuel, acho que agora o (Teatro) Dulcina quita as dívidas comigo!". Um sonho? Uma quimera?


Mas havia outro Túllio. O Túllio da noite, o Túllio da risada larga e das repetições de um poema do Fernando Pessoa que ele sempre resgatava na alta madrugada. Até brincávamos que não se tratava de um repertório poético, mas sim de um "repetitório", pois quando o assunto cessava lá vinha ele bradar com voz gutural:


"Tão abstrata é a idéia do teu ser

Que me vem de te olhar, que, ao entreter

Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,

E nada fica em meu olhar, e dista

Teu corpo do meu ver tão longemente,

E a idéia do teu ser fica tão rente

Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me

Sabendo que tu és, que, só por ter-me

Consciente de ti, nem a mim sinto.

E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto

A ilusão da sensação, e sonho,

Não te vendo, nem vendo, nem sabendo

Que te vejo, ou sequer que sou, risonho

Do interior crepúsculo tristonho

Em que sinto que sonho o que me sinto sendo."

Fernando Pessoa


Ao final do pequeno monólogo, como quem não queria (mas querendo), fazia flutuação com as mãos de maneira bem lenta sinalizando que era o momento de aplausos. E aplaudíamos! Nós... os pupilos do Senhor Reitor.


Aliás, numa dessas epopeias narradas por ele, um dia apareceu machucado na sala de aula e ficamos com receio de perguntar se havia acontecido algo. Ele, de pronto, já disse: "Me encontrei com um bandido idiota que não sabe o que é butoh!" Ficamos parados sem entender a relação do butoh com o machucado no rosto.


É sabido que o butoh é uma forma de dança japonesa que surgiu no pós-guerra, na década de 1950, e que mistura tradições japonesas com técnicas de dança ocidental, sempre com movimentos lentos, muuuuuuito lentos. E quem fez aulas com Túllio sabe que ele era capaz de nos deixar três horas seguidas experimentando o tempo da flutuação com o suor pingando. Pois bem... Ele nos explicou que, ao sair do Beirute a caminho de casa, um marginal o abordou e, numa tentativa cênica de impedir o assalto, começou a se contorcer em câmera lenta, com gestos e expressões expressionistas, torções de punho e dorso, fazendo com o que o assaltante se assustasse. O que seria aquilo? Com medo, o meliante gritou, o empurrou e fugiu. Em câmera lenta, o ator caiu no chão, arranhando a face. A aula terminou ali mesmo, com todos rindo de orgulho e replicando essa história em nossos encontros futuros.


Nos últimos anos, Túllio brilhou no palco em duas ocasiões que merecem destaque: em "Desbunde" e em "Volver a Leticia". Esta última, numa celebração aos seus 35 anos de carreira. Vimos o ator fazer ali no palco o que queria, com muita maestria e domínio daquele lugar. Sua última atuação se deu na peça "Lua, tu és meu sol", em 2024.

Túllio guimarães em "Desbunde", "Volver a Letícia", "Grupo Viva a Vida" e "Lua, tu és meu sol" - Reprodução: Facebook

A morte de Túllio Guimarães nos faz pensar sobre o que ainda pode ser feito pela valorização do artista da cena. Será que nosso currículo, nosso portfólio, nossa trajetória não vale uma passagem digna pelo reino de Hades? Será que nossa passagem por aqui vai ser encerrada na busca desesperada por dignidade, leitos de hospitais disponíveis e sepultamentos minimamente honrosos?


Nas últimas vezes em que me encontrei com ele estávamos meio afastados. Não digo rompidos, mas ligeiramente afastados em decorrência das denúncias que eu havia feito sobre o Teatro Dulcina. O vi no velório de Ribamar Araújo, mas o cumprimento foi rápido. Me disse apenas: "Mais um dos nossos...". Eu havia passado por um grave problema com a gestão do teatro e ele me ligou dizendo que seria interessante cessar minhas denúncias para preservar a instituição. Me disse que haveria a possibilidade de um mecenas bancar as dívidas e pagar os direitos trabalhistas de todos os profissionais e que minhas denúncias, naquele momento, poderiam prejudicar o avanço disso. Reiterou que me respeitava, que eu era um rapaz inteligente, mas que preferia não se envolver em minha história, alegando que dias melhores viriam... Ali entendemos que era o momento de uma pausa providencial na relação. Uma pausa política, estratégica na ocasião.


Já nas últimas semanas de dezembro, começaram as ligações, mensagens e mobilização dos artistas, comunicadores e políticos em busca de um leito de hospital para ele. Passou alguns dias na UPA e a transferência para um hospital de referência foi essencial. Aos poucos, um mutirão na internet e diversas mensagens de afeto e calmaria falando do estado de sua saúde. É claro que com um veículo que chega às pessoas, não poderia ficar de fora aqui com o Portal. Túllio me ajudou num momento importante da carreira e isso é inegável. A gratidão é eterna. Transferido para o HRAN, esteve internado até o dia 28 de dezembro, quando veio a óbito às 12h35 de um sábado.


Túllio Guimarães amou Dulcina de Moraes e o espaço criado por ela. Viveu por aquele lugar e, ironicamente, morreu como ela - em busca de um leito num hospital na melhor idade. Até isso Túllio e Dulcina tiveram em comum... Foram profissionais brilhantes, tiveram lá seus defeitos, suas virtudes, mas é inegável que impactaram a vida de centenas, milhares de pessoas. Morreram de um jeito comum, com a dignidade necessária para se partir depois de muitos desafios.


Como terá sido quando Dulcina morreu? - Eu me perguntei muitas vezes, pois era muito novo na época.

Foi do mesmo jeito que Túllio - Hoje me vi constatando isso.


A morte de Túllio nos ensina que a nossa arte não pode ser vão e que nossa passagem por esta vida tem que ser alegre e consciente. Mecenas misteriosos que vão quitar nossas dívidas não existem. É como esperar um Godot que nunca virá. O que existe é a possibilidade de modificar a estrutura do mercado das artes agora para que possamos viver e morrer com dignidade. Só queremos ela: a dignidade. Só isso.


A Túllio Guimarães deixo hoje meu melhor sorriso.

Vá com os deuses, mestre! Dulcina o estará aguardando com um pote de sorvete Kibon! Aquece a pelves de frente pra lá e caminha, caminha, caminha, caminha!


Por aqui seguiremos honrando os que vieram antes de nós.


Josuel Junior, do Portal Conteúdo.


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